sábado, 30 de janeiro de 2016

A ESPOSA DO SENHOR REITOR



                                                       A ESPOSA DO SENHOR REITOR

             O senhor reitor era o senhor reitor. Soleníssimo, sisudo e autoritário. Cinzentão também, imitação menor de Salazar. Chamava-se Amilcar P. Nós, os alunos, temíamo-lo como à peste. À sua passagem levantávamo-nos, movidos pelo respeito e um certo temor.
             Mas a esposa do senhor reitor era o seu lado inebriante e solar. Falo-vos de uma deusa terrena e apetecível. Elegantíssima, trajava uma saia justa, um pouco acima do joelho, violando as regras do bom tom. Dos seus olhos verdes derRamava-se uma luz irrepetível, aureolada por uma farta cabeleira loira, que caía às ondas sobre os ombros.
               E eu, derreado pela beleza torrencial daquela cariátide lusa, sonhava com ela, à noite, revolvendo-me na cama. E fazia com ela um amor puro, infinito e caudaloso, isento de pecados e moralidades. Despia-a lentamente, beijava-lhe o aroma da pele branca e o segredo dos seios,  transtornado pela nascente caudalosa das coxas.
             Acreditei amá-la para sempre, na ignorância de que, como escrevia Vinícius, o amor é eterno enquanto dura.
           Chamava-se a minha deusa E. Contudo, para mim, sempre foi a esposa do senhor reitor.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

A MORTE NA PONTA DA CORDA





                                                           A MORTE NA PONTA DA CORDA



             Toda a cidade estranhou  que o sr. Flávio B. fosse casar. Conheciam-se-lhe os gestos amaricados, a roupa a fugir do convencional salazarista e eclesiástico, e fundamentalmente o facto de nunca ter tido namorada, apesar de já ter virado há muito os 30 anos. Entre nós, adolescentes de sangue na guelra, a etiqueta estava colada na testa do sr. Flávio -  era paneleiro.
              Filho único de um abastadíssimo comerciante de panos e flanelas italianas, sofrendo a pressão autoritária do pai para se casar  afim de ter descendência a quem deixar o negócio, o sr. Flávio - não duvidávamos - ia casar contra a sua vontade e contra a sua natureza. De casamento marcado na sé de Leiria, com cerimónia presidida pelo sr. bispo, aguardava-se o estadão propiciado pela riqueza do pai do noivo.
         Todas as nossas poucas dúvidas terminaram quando o sr. Flávio se enforcou em casa, dois dias antes da boda. O curioso ou não, é que neste acontecimento não consigo recordar quem era a noiva




   


domingo, 24 de janeiro de 2016

O GALADOR



                                        


                                                 o galador

                 Na cidade de Leiria toda a gente sabia que o sr. Ramalho G. era um galador. Não resistia a uma mulher e elas, apesar de o saberem casado e pai de três filhos, deixavam-se ir nas notas melodiosas da canção do bandido. É que ele não tinha apenas a figura inebriante do Cary Grant - onde não faltava o bigodinho - além de que era de uma simpatia e gentileza cativantes, não se fazendo rogado a desembolsar notas para seduzir a pretendida.
                       A esposa procurava manter um dignidade a toda a prova, fingindo ignorar a traição que  acontecia nas suas costas. Mas definhava de dia para dia e as suas únicas  saídas de casa tinham a ver com a obrigatoriedade da missa e os afazeres na igreja de Santo Agostinho.
         Até que um dia um vulcão implodiu a cidade quando se soube que ela fora  encontrada na cama com um jovem carpinteiro, afilhado do marido. Eu, um rapaz a iniciar-se na adolescência e a colocar-se nas trincheiras da contestação, rejubilei. Porém, para meu grande espanto, a cidade atirou-lhe os cães do  ódio e ela passou a ser designada por "a putarrona". Não lhe perdoaram a ofensa aos cânones da moralidade tradicional, que esta nem o marido beliscou.
              E foi com merdices deste cariz que fui crescendo e percebendo o mundo complicado e sinuoso do ser humano.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

O ANJINHO NO CAIXÃO











                                                            O ANJINHO NO CAIXÃO

               O ar saturado de humidade e um odor a mijo de ratos mal me deixavam respirar. O casebre, enfiado sob um pequeno declive mesmo no centro de Leiria, era iluminado por uma única porta escancarada e pelas velas mortuárias que rodeavam o pequeno caixão - branco e com debruns dourados. No esquife jazia um corpo de bebé. Era um anjinho. Naqueles anos 50 a tuberculose andava à solta como nunca e na ceifa desenfreada levava os mais frágeis: os pobres e os filhos dos pobres.
              Não consegui ficar ali por muito tempo, agoniado pelo cheiro, pela miséria paupérrima e pelo carpir dorido. Levava na retina a imagem daquele caixão.
               Foi só muitos anos mais tarde que percebi a naúsea que me provocavam as mobílias brancas com debruns dourados -estilo Luis XIV - e que estiveram na moda nos anos 80. Arrepiavam-me.
           Regressar ao passado não é uma forma de saudade ou infantilização, mas sim um amadurecimento. O passado deve ficar onde está.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

OS CHATOS

                                             

                                                     

                                                                       OS CHATOS

           Nenhum de nós podia adivinhar que aquilo não passava de um tique. Foi no 7º ano (actual 10º) que um novo professor se apresentou para nos dar OPAN - uma disciplina que não era mais do que propaganda do regime salazarista.
        Tímido, quase sem barba na pele glabra, a sua juventude levou a contínua a barrar-lhe o caminho quando ele entrou pela 1ª vez no anexo do liceu -uma divisão do quartel de Infantaria 7 -onde os mais velhos tinham aulas. Julgou tratar-se de um aluno.
             Na verdade, o nervosismo do professor coagia-o a um tique repetido e malfadado: coçar o baixo-ventre, num movimento rápido de dedos que nós, machos implacáveis com o cérebro cheio de testosterona e malandrice, interpretávamos como sendo "uma camada de chatos". Pior ainda, o gesto daquele desamparado professor, provocava o riso que nós forçávamos, reconhecendo-lhe a insegurança.
          Já no 2º período, quando o tique acabou por desaparecer porque ele próprio - isto penso eu hoje- se foi sentindo mais confiante, acreditámos que o professor andava a fazer um tratamento aos chatos que passava por abundantes semicúpios com enxofre diluído em água quente. Digamos que era uma espécie de sulfatagem

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

O MILAGRE NA COVA DA IRIA









                                                  O MILAGRE NA COVA DA IRIA

            Minha mãe, apenas com seis anos, assistiu ao chamado milagre do sol a dançar no céu. Foi a 13 de Outubro de 1917 e ela era uma das humílimas pessoas presentes no local. Tornou-se uma devota insuperável da Senhora de Fátima.
            Quando atingi a adolescência e passei a colocar tudo em causa, não me ocorreu outro argumento que não fosse achar aquele fenómeno atmosférico e de histeria colectiva como obra dos marcianos e dos discos voadores.
      Minha mãe surpreendida com o disparate admoestou-me:
     - Ora, ganha juízo.
       Durante toda a minha vida quando tive que tomar algumas decisões com algum risco e cheguei até a defender o indefensável, ouço minha mãe a sussurrar-me ao ouvido aquela admoestação.
Porém, só me arrependo de não ter tomado as decisões que se me impunham e que na altura não soube valorizar.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

A ILHA DOS AMORES










                                          A ILHA DOS AMORES


             No meu liceu dos anos 50, requisitar um livro era penetrar a Ilha dos Amores dos Lusíadas. É que a biblioteca - se é que se pode chamar biblioteca a um armário com meia centena de livros - ficava na sala dos professores e esta no 1º andar.
           Este espaço era ocupado exclusivamente por alunas e rigorosamente vedado aos alunos. Esta proibição sofria uma rara excepção quando algum rapaz pretendia requisitar um livro como era o meu caso, leitor esfomeado como sempre fui. Depois de pedir autorizalção ao contínuo que estava de plantão às escadas, subia até ao 1º andar onde me esperavam  ninfas perfumadas, sedentas de trocas de olhares e recatados sorrisos. Eu sentia-me um  sedutor Errol Flynn (o galã da época, vulgo Enrola o Filme), pronto a engatar o jovem mulherio.
              Contudo não tardou que alguns dos meus colegas passassem a fazer-me companhia nas idas até à Ilha dos Amores. À minha conta nunca se requisitaram tantos livros. Se eles os leram, não sei nem interessa. O que nos movia - e a mim também além da grande paixão pela leitura - era o estampido das hormonas. E eu pressentia nas ninfas o mesmo desassossego.





terça-feira, 12 de janeiro de 2016

FALTA DE PESO

                           
                       



                                                     FALTA DE PESO

            Em pleno inverno, a austera e solteirona professora Ofélia C. começava a sofrer de inesperados calores. Afogueava-se-lhe o rosto, retirava o cachecol do pescoço, despia o casacão, abria um pouco o decote da blusa. Com uma folha fazia um leque improvisado com que se abanava repetidamente. A mulher parecia arder por dentro. Minutos depois voltávamos a ver o mesmo filme, desta vez em marcha-atrás.
          Para nós, uns ignorantões destes dramas femininos, eram momentos de galhofa. De facto, cheios de frio nas carteiras, olhávamos todo aquele strip-tease com o pasmo dos estúpidos. Porém, o Titú, um moinante de alto coturno, mais velho do que nós dois anos e que já tinha ido às putas - o que lhe dava outro estatuto - garantiu com a convicção dos sábios:
         - À Ofélia o que lhe falta é peso.
        A verdade é que ainda hoje, quando vejo uma mulher com aqueles sinais da menopausa, não consigo deixar de pensar na afirmação do Titú. Há coisas do passado que se colam a nós irremediavelmente 

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

O SENHOR PADRE ADÉLIO

                                         



                               O SENHOR PADRE ADÉLIO

        Tive explicações a Latim com osenhor padre Adélio que morava nos arrabaldes de Leiria, onde é agora o estádio municipal.
           As explicações tinham lugar bem ao final da tarde na cozinha onde cirandava uma velha criada a lavar a louça. O padre ceava cedo por causa da missa da manhã seguinte, por volta das 7. A explicação decorria com amenidade e paciência católicas, com o padre a soltar breves arrotos e a entregar-se a chupadelas de dentes. Nunca me pediu desculpa pela deselegância dos sons.
           Preocupava-o sim, a velha criada. Na sua movimentação de formiguinha ladina, ela soltava uns traques sonoros, como disparos breves de metralhadora. E o padre, numa tentativa cómica de camuflagem, arrastava a cadeira e pigarreava.
              Apesar destes circunstanciais escolhos, ainda hoje gosto de latim,- que cheguei a utilizar nas falas de algumas personagens dos meus contos e romances - embora por vezes ainda me venham à memória os sons da metralhadora intestinal.
                               
                                                alliud alic vitio est (cada um tem os seus defeitos)

Noémia

                                                 




             NOÉMIA

                 Por força da ordem alfabética, a Noémia teve que se sentar a meu lado na sala de aula. Era o início do ano lectivo de 1958 do 6º ano (actual 10º). No nosso percurso escolar ( e de todos os alunos), a moral salazarista impunha que não houvesse turmas mistas. Era a 1º vez que tinha uma colega sentada junto de mim, partilhando a mesma carteira. Eu já a conhecia de longe. Estudávamos no mesmo liceu, ela no 1º andar reservado às meninas, que isto de misturas de sexos pode significar juntar a fome com a vontade de comer. Ou chegar o fogo à palha. Como quiserem.
            A Noémia exibia uma pele branca, imaculada, uns olhos verdes luminosos, um cabelo loiro que caía sobre os ombros e um sorriso capaz de amansar o Adamastor. De mais nada me lembro daquela primeira aula nem das outras que se seguiram. Só sei que em dada altura, ela sussurrou-me ao ouvido:
         - Não tens um lápis a mais? Partiu-se-me o bico.
          Sem hesitar, cedi-lhe o meu.
          Ainda hoje gosto que as mulheres me sussurrem ao ouvido. 

A PROFESSORA DE GEOGRAFIA

                  A PROFESSORA DE GEOGRAFIA
        Naqueles tempos cinzentos dos anos 50, a jovem professora de Geografia era a  luz que iluminava a minha recém adolescência. Na exposição da matéria, e talvez sem o saber, ela meneava-se como deusa do erotismo e da tentação.
        Na carteira, eu sufocava, excitado pelos seios redondos, a cintura bem marcada e uma coxas olímpicas que se prolongavam numas pernas perfeitas. Era um tempo em que, graças a Deus, as mulheres usavam saias - e professora tinha-as acima do joelho, o que era desafiador -, meias de seda e sapatos de tacão alto. Durante décadas e sempre que atravessava fronteiras geográficas, eu lembrava-me daquela professora. Sempre gostei muito de Geografia.

A TIA FILÓ

 A TIA FILÓ

A tia Filó estava quase cega por causa dos diabetes. Era gulosa, perdia-se por bolos, especialmente bolas-de-berlim afogadas em açúcar branco.
Depois de examinar-lhe os olhos, o médico sentenciou com rudeza: "Ficas proibida de comer bolos e passar a tarde na pastelaria para não te tentares." Era um tempo antigo em que os médicos tratavam os doentes por tu.
A Tia Filó continuou a ir para a pastelaria, mas fica do lado de fora a observar a montra. E tapa o nariz firmemente  por causa das tentações odoríferas. Como respira pela boca, parece um peixe desesperado fora de agua

domingo, 10 de janeiro de 2016

MARRAQUEXE

MARRAQUEXE

           Meu pai tinnha uma imensa mercearia saturada dos odores mais estanhos.
De cada vez que eu lá entrava, imaginava-me - e não sei porquê -
no mercado em Marraquexe, embora nunca lá tenha estado,
isto é nem nem no mercado nem em Marraquexe.
             Hoje, muitos anos depois de meu pai ter fechado a loja - foi o aparecimento dos supermercados, tenciono visitar Marraquexe.
Meu pai havia de gostar. Pode ser que o lá enontre