sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

CAGAR SÓ FORA DO COMBOIO (inédito)









                                              CAGAR SÓ FORA DO COMBOIO


           O avô António era um viúvo taciturno, magoado com a vida, e talvez por outras razões minhas desconhecidas. Dele sabia que tinha combatido na 1ª guerra mundial, estivera na Flandres, sobrevivera ao tifo, à tuberculose e ao gás mortífero dos alemães que desfazia os pulmões. Não sofreu uma beliscadura física. Psicológica, não duvido, já que ninguém sai incólume da guerra.
          De vez em quando, falando sozinho com quem interpela os seus fantasmas, referia-se à guerra em duas ou três considerações telegráficas. Desses curtíssimos solilóquios, lembro-me, pelo seu inusitado, ter-se referido à viagem de comboio de Portugal até França.
         - O comboio não parava - dizia perscrutando o silêncio à sua frente -. Quando queríamos cagar, íamos para o fim da carruagem, abríamos a porta, púnhamos o cu de fora e aliviávamos os intestinos.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

O ENIGMA DA PERNA ENGESSADA (ninharia inédita)











                                  Nas longas férias de Verão nos anos cinquenta, a vida dos adolescentes era um tédio sufocante. Puxávamos pela imaginação e pelo disparate para fazer correr o tempo. Certo noite, um de nós convenceu o Liberman a roubar o carro ao pai e irmos dar uma volta, apesar de nenhum de nós ter carta.
               Já perto da Marinha Grande - a 10 km de Leiria - o Liberman despistou-se na sua insipiente codução e bateu violentamente contra um pinheiro, desfazendo a frente do carro.
              Alucinado, saiu para ver a tragédia automobilística, e entendeu pontapear com toda a força o pinheiro, até que um de nós o impediu de continuar naquela doideira.
            Faltou no dia seguinte às aulas e quando apareceu vinha com uma perna toda engessada.
          Ainda hoje estou sem saber se aquilo resultou do choque ou da violência dos pontapés.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

AS LÁGRIMAS DO AVÔ ANTÓNIO




                Meu avô António, depois de ter enviuvado, jantava em casa de meus pais. Era um velhinho encerrado num luto espesso, mirrado e soturno, talvez feridas psicológicas da batalha de La Lys, donde saiu sem uma mazela e de pulmões direitos.
          Lembro-me bem dele a comer à minha frente enquanto ouvíamos as notícias na Emissora Nacional da tomada de Diu, Damão e Goa, ordenada pelo primeiro ministro indiano Pandita Nehru. Era Dezembro de 1961. A reportagem era acompanhada por discursos afogueados e pelo entoar categórico do hino nacional por um povo enredado na propaganda salazarista.
                Meu avô chorava, refugiado em silêncio. Via-lhe as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto e a caírem no prato. O repúdio público pela invasão indiana repetiu-se por mais uns dias, com meu avô a reagir com o mesmo silêncio dorido e as mesma lágrimas.
          Na verdade eu estava-me marimbando para que Portugal ficasse sem aquelas três possessões na Índia, restos de um Império Colonial que principiava a desmoronar-se. O que eu não perdoava ao Pandita, isso é que não, é que ele levasse meu avô António às lágrimas. Custa muito ver um velho frágil e nosso a chorar.



sábado, 6 de fevereiro de 2016

AL-23-09

       
 
 
                 O primeiro e único automóvel de meu pai era um Opel Record, mudanças ao volante, 2000 cc., matrícula AL-23-09. Era um luxo ter um carro assim. Aliás, durante a penúria  do salazarismo, possuir um automóvel era coisa rara além de ser encarado como forma de ostentação.
           Era minha irmã Olga que o conduzia e não posso dizer que ela fosse propriamente dotada  para as artes da condução. O que me ficou desses tempos das curtas viagens no Opel foram os avisos nervosos directos à condutora para ter cuidado com isto e com aquilo.
          Nas descidas prolongadas, minha irmã era aconselhada por meu pai a meter o ponto-morto ou até a desligar o motor. A circunstância merecia dele o tradicional comentário de satisfação:
               - Agora roubamos nós o Salazar.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

MENINAS ADOENTADAS

 
 
 
 
 
                  As mulhere são e continuam a ser um grande mistério para mim. Tudo isto terá começado quando pela 1ª vez -tinha eu 15 anos - os alunos do meu liceu se puderam sentar com as raparigas na mesma sala. Como eu fazia quase sempre figura de corpo presente, alheado do que o professor ia debitando, entretinha-me a divagar  ou a reparar no pouco que ia acontecendo à minha volta.
                  Não pude deixar de notar, então, que algumas vezes uma ou outra colega se dirigia à professora e, sussurrando, pedia para sair, regressando dali a longos minutos. Aquilo fazia-me espécie. E nem fiquei esclarecido, antes pelo contrário,  quando uma certa vez a professora tentou justificar a saída da aluna com esta informação enigmática: "Está adoentada". Estranha maleita pensava eu, intrigado com uma doença que se curava em poucos minutos. E pensava cá para mim que tinha umas colegas de saúde frágil.
              Só uns anos mais tarde é que vim a saber que se tratava do famigerado e odiado p.m., "doença"(!) que ataca as mulheres e as põe de fígados azedos todos os meses.
       Mas ainda hoje me lembro daqueles episódios longínquos na sala de aula, sempre que ouço aquela afirmação, mesmo que se trate de alguém que já entrou no reino pacífico (ou não!) da menopausa.